JORGE RODRIGUES SIMAO

ADVOCACI NASCUNT, UR JUDICES SIUNT

A guerra: um erro do pensamento

Edgar Morin - A crise da humanidade

martin

 “The Great War was the single most important event of the twentieth century, shaping the world that we live in today. Yet it is often regarded as a pointless war; a catastrophic mistake fought for little or no reason. Historians, politicians and economists may testify to its over-arching importance, but somehow the popular belief remains that it was all for nothing.”

The Great War: A Combat History of the First World War

Peter Hart

O indescritível horror e sofrimento que causou a primeira grande guerra mundial, mereceu no seu auge uma acusação terrível por parte do filósofo francês Alain, aliás, Emile Chartier, ao afirmar que a mesma era um erro de pensamento. Ao contrário das guerras do período da Revolução Francesa, onde batalhas como as de Verdun de 1792 serviam, mesmo aos olhos de inimigos privilegiados dos republicanos gauleses, como Goethe, para dividir a história em duas idades, em que o sangue vertido e as vidas dissipadas pareciam estar ao serviço de um propósito válido, o terrível massacre das trincheiras, opondo sobretudo franceses e alemães, aparecia como uma automutilação, mesmo um suicídio da cultura europeia.

 

Alain, coberto pela lama vermelha dos campos de batalha, não hesitava em denunciar que o holocausto dos dois povos decisivos para o futuro da Europa constituía “uma luta contra aquele que é mais semelhante, contra o outro, que sente e pensa do mesmo modo”. Sem ter imediata consciência, Alain acabava por identificar a I Grande Guerra como a realização de uma profecia de Nietzsche, que quatro décadas antes da eclosão do conflito, escreveu “Mas, tal como os gregos se enfureciam no sangue grego, assim o fazem agora os europeus no sangue europeu…”.

A meditação de Alain expressa uma das posições centrais da filosofia em relação à guerra; esse fenómeno de aparente desmesura tem uma relação com o pensamento. A aparente destruição categorial que, para as testemunhas e participantes na empresa bélica, acompanha a destruição sistemática dos corpos não é a última palavra dos filósofos sobre os desafios colocados à razão pela guerra. Na mesma altura em que Alain experimentava as suas dolorosas experiências de homem de meia-idade, aos quarenta e seis anos a envergar o uniforme de artilharia, o grande estratega inglês Liddel Hart parecia chegar à mesma conclusão, de que a primeira guerra mundial significava um erro intelectual.

Mais precisamente, para Liddel Hart alguns dos milhões de combatentes mortos nas trincheiras teriam sido poupados se os chefes militares europeus não tivessem cometido o erro teórico de conceder um valor absoluto aos ensinamentos do general, estratega e teórico da guerra prussiano, Carl von Clausevitz, que através do seu incontornável tratado “Da Guerra”, seduziu os Estados-Maiores para a necessidade de mobilizar todos os recursos dos países num esforço imoderado e incessante para apressar o momento de confronto decisivo, da decisão pelas armas. Apesar da diferença entre Alain, para quem a noção de pensamento possui uma dimensão e uma amplitude que não é confundível com a orientação técnica, de cariz estratégico e táctico, e Liddel Hart, ambos estão de acordo, na tese, cujo núcleo considera que a guerra, na sua malévola explosão de sangue e destruição, manifesta uma estrutura conceptual, um fio condutor, tanto no sentido teleológico mais profundo como na condução operacional dos homens e das armas.

A guerra não é a manifestação convulsiva da violência, e eclosão espontânea da agressividade. A guerra é o oposto de tudo. Implica organização, controlo e autocontrolo, planeamento sistemático, disciplina sem limites, educação dos homens e dos povos para resistir a doses aparentemente intoleráveis de sofrimento ou, pelo menos, a aprendizagem do adiamento temporal do trauma e do luto. As semelhanças entre Alain e Liddel Hart terminam neste ponto. As consequências do erro de que fala Alain não são do mesmo tipo das do militar inglês. O erro que Alain descobre não é de ordem simples do cálculo estratégico. É de uma ordem muito superior, tão elevada que talvez nos conduza a duvidar se existe actualmente algum sentido, para se continuar a falar na racionalidade do fenómeno bélico. Será que pensar a guerra não será pensar o impensável?

A primeira deficiência de apreciação em que alguém pode incorrer ao pensar a guerra é ignorar a sua labiríntica complexidade. A segunda consistirá em ignorar a necessidade de um caminho de saída. A urgência de um princípio unificador de interrogação e compreensão das questões da guerra, e consequentemente, também da paz. A “polemologia” constitui um esforço relativamente recente e interessante para assumir o desafio desse labirinto.

O seu saldo, nomeadamente aquele que podemos descortinar em alguns textos de Gaston Bouthoul, sociólogo francês, especialista no fenómeno da guerra e fundador e promotor dessa nova disciplina, é de nos prevenir contra o risco de teorias que aparentam virtualidades explicativas e partir de um quadro redutor e unilateral de princípios, mas fica todavia, a impressão de que o esquema de tratamento conceptual está montado sobre um modelo de estrutura eclética que o labirinto das representações integráveis no interior da “polemologia” corre o risco de ser tão interminável como paralisante, no que respeita à necessidade de decisões teóricas fundamentais.

A “etologia”, de acordo com o etólogo austríaco e Prémio Nobel da Fisiologia/ Medicina de 1973, Konrad Lorenz, insiste na necessidade de compreender, simultaneamente, a relação e a diferença entre a agressividade e a guerra. As pulsões agressivas foram essenciais na evolução da espécie humana. A selecção natural privilegiou os indivíduos agressivos na medida em que aumentavam as possibilidades de sobrevivência da espécie num horizonte de dura competição em ambientes hostis. Todavia, a guerra não é redutível às tendências agressivas filogenéticas. A guerra implica uma elaboração e apropriação culturais dos impulsos agressivos. A mensagem de Konrad Lorenz aponta no sentido de uma inversão do papel desempenhado pela combinação agressividade – guerra no interior da economia de sobrevivência, que durante longo período contribuiu para a viabilidade do frágil ser humano, animal desprovido de defesas naturais ostensivas, tornou-se um elemento destrutivo, um obstáculo à continuidade da marcha histórica da cultura, um pecado mortal civilizacional de dimensões apocalípticas como apelidou, o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, ainda que noutro contexto.

Os enigmas da guerra e a premonição dos perigos mortais para a cultura por si representados foram, certamente, um dos factores decisivos na elaboração da segunda teoria das pulsões de 1920, pelo médico austríaco e fundador da psicanálise, Sigmund Freud, quando as sombras ameaçadoras da guerra mundial ainda se estendiam pela Europa Central em convulsão. A tensão entre as pulsões da vida e da morte, entre “Eros” e “Tanatos”, como as denominou, implicou o alargamento da esfera de aplicação da psicanálise, a deslocação do fulcro da sua análise do domínio estritamente clínico e individual para o plano social e civilizacional. É correcto considerar, mais do que qualquer outro motivo, ter sido o impacto da guerra que transformou Freud num pensador dos destinos da cultura e da história.

O ser humano no instinto agressivo que o caracteriza nunca deixou apagar as brasas da guerra, sempre assoprando com equipamentos bélicos mais modernos e estratégias mais aperfeiçoadas, que como faixa olímpica vão percorrendo o mundo e pegando fogo, desde a Síria, passando pelo Egipto e Tunísia que se presumia estarem a viver momentos calmos de transição democrática, até às demonstrações de terror psicológico protagonizado pelas paradas militares na comemoração do sexagésimo aniversário do armistício na Coreia do Norte, sem desconsiderar muitos outros focos como os do Iraque, Afeganistão, Palestina e Paquistão.

A tarefa de questionamento filosófico em torno da guerra e da paz, a resposta filosófica às tentações do labirinto clarificam-se desde a tematização nos alvores da modernidade, da categoria de Estado, descrita no “Leviatã”, essa obra genial do matemático, cientista político e filósofo inglês, Thomas Hobbes, na qual tem sentido procurar a pista da guerra e da paz. Assim, neste domínio, a ética, a filosofia da educação e a antropologia filosófica são saberes sobre determinados pela estrela mais brilhante da constelação, que é constituída pela necessidade de desenvolver uma teoria do Estado que integre a possibilidade difícil do exercício dos direitos e deveres de cidadania, ou seja, de uma filosofia política que não reduza a acção política à esfera de intervenção majestática do “Leviatã”.

A filosofia moderna caracteriza-se pela crítica das possibilidades, métodos e limites do conhecimento como condição para assegurar o sucesso da expansão da cultura europeia pelo mundo, não é menos verdade a estreita correspondência que se estabelece entre a categoria relativa aos fundamentos do conhecimento do indivíduo e a categoria política de cidadão; essa correspondência, em muitos casos, mesmo de analogia funcional, permite compreender o modo como a filosofia da guerra se transforma em filosofia da construção e da manutenção da paz. A guerra deixa de ser um objecto permanente e enigmático, um sinal inevitável da infinitude e imperfeição da natureza humana para se tornar um problema, cuja solução depende da identificação da paz, não como uma esperança transcendente mas como uma tarefa possível de ser realizada no quadro da mobilização dos recursos políticos de uma sociedade.

 

Jorge Rodrigues Simão, in “HojeMacau”, 02.08.2013
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