JORGE RODRIGUES SIMAO

ADVOCACI NASCUNT, UR JUDICES SIUNT

Ciência com Consciência: Edgar Morin na Era da Inteligência Artificial, da Crise Climática e da Fragmentação Social

AFS

HOJEMACAU - O FIO ÉTICO DA CIÊNCIA - 04.09.2025

 A exploração científica, outrora celebrada como o auge da engenhosidade humana, encontra-se agora enredada em dilemas que transcendem os limites empíricos. Edgar Morin, cujo legado intelectual desafia o raciocínio linear e acolhe a interligação dos sistemas, oferece uma lente através da qual os desafios contemporâneos podem ser reformulados. A sua filosofia, enraizada na complexidade, resiste à compartimentação e apela a uma síntese entre conhecimento, ética e experiência humana. Num mundo moldado pela inteligência artificial (IA), instabilidade ecológica e desintegração sociocultural, o imperativo de integrar a consciência na prática científica torna-se não apenas desejável, mas essencial. A proliferação de decisões algorítmicas, embora prometa eficiência, levanta questões profundas sobre autonomia, enviesamento e responsabilidade. As máquinas simulam cognição, mas a sua arquitectura reflecte prioridades humanas, frequentemente desprovidas de previsão ética. A insistência de Morin na reflexividade exige uma reconsideração dos alicerces sobre os quais os sistemas tecnológicos são construídos. Ele desafia a ideia de que progresso é sinónimo de aceleração, propondo antes um paradigma que valoriza profundidade, relacionalidade e responsabilidade.

A degradação ambiental, manifestada no aumento das temperaturas, perda de biodiversidade e esgotamento de recursos, evidencia as limitações das abordagens reducionistas. Os modelos climáticos, embora sofisticados, não conseguem captar o peso moral do deslocamento, do sofrimento e da injustiça intergeracional. O enquadramento de Morin convida a uma transição do controlo para o cuidado e da exploração para a tutela. Defende uma ciência que escuta, que se envolve com as realidades vividas por aqueles que são afectados pelos seus resultados. Esta ética exige humildade, o reconhecimento de que nenhuma disciplina isolada detém a chave para compreender fenómenos complexos. A fragmentação das estruturas sociais, agravada por câmaras de eco digitais e precariedade económica, revela uma crise mais profunda de sentido. Os indivíduos navegam por um panorama saturado de informação, mas desprovido de contexto, onde a identidade é moldada por algoritmos e o diálogo é substituído pela polarização. O pensamento relacional de Morin oferece um contraponto a esta desintegração. Propõe que a compreensão emerge da interacção, da tecedura de perspectivas diversas.

A IA, embora revolucione sectores, também reconfigura dinâmicas de poder. As análises preditivas na justiça, saúde e finanças expõem padrões de exclusão, desafiando pressupostos de neutralidade. A crítica de Morin à racionalidade tecnocrática evidencia o perigo de ignorar as dimensões socio-históricas da inovação. Recorda-nos que o conhecimento dissociado da consciência corre o risco de se tornar instrumento de dominação. A reflexão ética deve preceder a aplicação, garantindo que o avanço tecnológico sirva em vez de subjugar. A emergência climática, de igual modo, não pode ser enfrentada apenas com inovação. Exige uma transformação de valores, uma reorientação de prioridades e o reconhecimento dos limites planetários. A visão de Morin apela à solidariedade entre fronteiras, disciplinas e gerações. Convida a uma reimaginação do progresso não como crescimento infinito, mas como aprofundamento da compreensão, não como dominação, mas como coexistência.

A fragmentação social, intensificada pela alienação cultural e erosão institucional, revela a insuficiência de modelos que tratam os indivíduos como unidades isoladas. O conceito de complexidade de Morin afirma a interconexão de todos os fenómenos. A ciência, quando guiada pela consciência, torna-se um meio de cura em vez de dano. Reconhece as realidades vividas por aqueles que são afectados pelos seus resultados e procura capacitar em vez de marginalizar. A IA, apesar das suas promessas, deve ser interrogada sob a lente da justiça. As suas aplicações devem ser escrutinadas não apenas pela precisão, mas pela equidade. A insistência de Morin na reflexividade ética desafia a complacência das narrativas tecnocráticas. Recorda-nos que o conhecimento sem sabedoria é perigoso e que o poder sem responsabilidade é corrosivo.

 

A perturbação climática, com os seus efeitos em cascata sobre ecossistemas, economias e culturas, exige uma resposta que integre discernimento científico com firmeza ética. O enquadramento de Morin encoraja uma transição do controlo para o cuidado, da exploração para a tutela. A fragmentação do sentido na sociedade contemporânea, alimentada pela desinformação e rigidez ideológica, exige uma renovação do diálogo. A ciência, neste contexto, deve tornar-se um espaço de encontro e um lugar onde vozes diversas contribuem para uma compreensão partilhada da realidade. A filosofia de Morin resiste aos compartimentos da especialização e convida a um envolvimento holístico com o mundo. A IA, a instabilidade climática e a desintegração social não são crises separadas, mas manifestações entrelaçadas de uma ruptura epistemológica mais profunda. O apelo de Morin por uma ciência com consciência oferece um caminho para a integração, para um futuro onde o conhecimento serve a vida e a ética orienta a inovação.

A investigação científica deve evoluir para além da busca pela utilidade. Deve acolher a incerteza, a complexidade e as dimensões morais da descoberta. A obra de Morin desafia a ideia de que a objectividade está isenta de valores. Argumenta que todo o conhecimento é situado, moldado pelo contexto, pela cultura e pela intenção. Esta perspectiva exige uma reavaliação de como a investigação é conduzida, como os dados são interpretados e como as conclusões são aplicadas. A IA, por exemplo, deve ser concebida com transparência, inclusão e responsabilidade. Os seus algoritmos devem reflectir experiências diversas e evitar a reprodução de desigualdades sistémicas. A ciência climática deve envolver as comunidades, respeitando o saber indígena e promovendo a governação participativa. As ciências sociais devem ultrapassar a abstracção, ancorando a teoria na experiência vivida e fomentando a empatia.

A filosofia de Morin encoraja a reintegração das disciplinas, a quebra das barreiras que isolam os campos de estudo. Idealiza uma ciência dialogante, que aprende com a arte, a filosofia e a espiritualidade. Esta abordagem não dilui o rigor, mas enriquece-o, permitindo uma compreensão mais matizada da realidade. Na era da IA, onde as máquinas mediam cada vez mais a interacção humana, a necessidade de uma base ética torna-se imperativa. As tecnologias devem ser concebidas não apenas para a funcionalidade, mas para a dignidade. Devem potenciar, e não diminuir, a actividade humana. A acção climática deve estar enraizada na justiça, enfrentando desigualdades históricas e promovendo transições equitativas. A coesão social deve ser reconstruída através da educação, do diálogo e de um propósito comum.

O conceito de complexidade de Morin não é uma rejeição da clareza, mas um convite a abraçar a riqueza da interconexão. Desafia a lógica binária que domina o discurso científico, propondo antes uma lógica de inclusão, contradição e emergência. Esta epistemologia reconhece que os fenómenos não podem ser plenamente compreendidos em isolamento, que o sentido surge do contexto e que a verdade é multifacetada. A IA, as alterações climáticas e a fragmentação social não são problemas a resolver, mas realidades a serem abordadas com ponderação. Exigem não apenas perícia técnica, mas imaginação ética. A visão de Morin apela a uma ciência humilde, que reconhece as suas limitações e que procura servir em vez de controlar.

 

A integração da consciência na prática científica não é uma restrição, mas uma libertação. Permite um envolvimento mais autêntico com o mundo, que honra a complexidade e promove o florescimento. O legado de Morin convida cientistas, educadores, decisores políticos e cidadãos a repensar os seus papéis, a abraçar a responsabilidade e a cultivar a sabedoria. Num tempo de transformação acelerada, os seus ensinamentos oferecem uma bússola e uma forma de navegar a incerteza com integridade. A ciência, quando guiada pela consciência, torna-se uma força para o bem, um meio de compreensão que respeita a vida em todas as suas formas. Torna-se uma prática de cuidado, um compromisso com a justiça e uma celebração da diversidade. A IA deve ser desenvolvida com previsão, antecipando consequências e promovendo inclusão. As respostas climáticas devem ser holísticas, integrando dimensões ecológicas, sociais e económicas. A renovação social deve priorizar a empatia, o diálogo e o sentido partilhado. A filosofia de Morin fornece uma base para esta transformação, oferecendo princípios que transcendem disciplinas e ressoam em diferentes culturas. A sua ênfase na complexidade, na ética e na relacionalidade oferece um caminho para reconciliar inovação com responsabilidade, conhecimento com sabedoria e progresso com consciência. Neste momento de convergência, onde forças tecnológicas, ecológicas e sociais se entrelaçam, a necessidade de uma ciência que escute, reflicta e cuide nunca foi tão urgente. O apelo de Morin não é um recuo do rigor, mas um aprofundamento do propósito. É um convite a reimaginar o que a ciência pode.

O conhecimento científico, quando dissociado da reflexão ética, corre o risco de se tornar um mecanismo de abstração que ignora a condição humana. O compromisso vitalício de Edgar Morin com a complexidade resiste a essa dissociação, propondo antes uma visão em que a ciência é inseparável da consciência, em que a investigação é guiada não apenas pela curiosidade, mas também pelo cuidado. As suas reflexões, como se observa em “En 1981, les réflexions d'Edgar Morin sur les implications de la connaissance scientifique”, revelam uma compreensão profética de como o progresso científico deve ser temperado por uma consciência moral. Morin não rejeita o poder da ciência; insiste que este deve ser reorientado para a vida, para o sentido e para a solidariedade.

A IA, com a sua capacidade de simular decisões e remodelar instituições, exemplifica a tensão entre inovação e ética. Os algoritmos, treinados com dados históricos, reproduzem frequentemente preconceitos sistémicos, reforçando desigualdades sob o disfarce de objectividade. A crítica de Morin ao reducionismo, como exposta em “Edgar Morin, Le défi des complexités en temps de crise.”, convida-nos a olhar para além da superfície dos sistemas tecnológicos. Propõe uma interrogação mais profunda dos valores incorporados no design, das intenções por trás da automatização e das consequências de delegar o juízo às máquinas. A complexidade, na sua visão, não é um problema a resolver, mas uma realidade a acolher. Exige que consideremos não apenas o que as tecnologias fazem, mas o que significam.

A crise climática, que se desenrola por continentes e gerações, revela os limites do pensamento fragmentado. A subida dos mares, o desaparecimento de espécies e os fenómenos meteorológicos extremos não são ocorrências isoladas; são sintomas de uma ruptura mais profunda entre a humanidade e a biosfera. A sensibilidade ecológica de Morin, enraizada na sua compreensão da interdependência, apela a uma ciência que escute a Terra. Em Edgar Morin “La sociologie peut-elle prévoir ?”, reflecte sobre a imprevisibilidade dos sistemas e a necessidade de uma sabedoria antecipatória. Os modelos climáticos podem prever tendências, mas não substituem o imperativo ético de agir com compaixão, de priorizar a justiça, de honrar os direitos das gerações futuras.

A fragmentação social, intensificada pelas plataformas digitais e pela volatilidade económica, desafia a própria noção de comunidade. Os indivíduos, bombardeados por informação, refugiam-se frequentemente em silos ideológicos, perdendo a capacidade de dialogar. A ênfase de Morin na relacionalidade, como explorado em “Sans Tabou sur "l'avenir de l'humanité"”, oferece uma narrativa alternativa. Propõe que a compreensão surge não do isolamento, mas do encontro; não da certeza, mas da abertura. A ciência, neste contexto, deve tornar-se um espaço de conversação e um lugar onde vozes diversas contribuem para uma visão partilhada da realidade.

A educação, como Morin articula em “Seven Complex Lessons in Education for the Future”, desempenha um papel fundamental na formação da consciência ética. Defende que os aprendentes devem ser equipados não apenas com factos, mas com a capacidade de navegar a incerteza, de reconhecer a complexidade, de se envolver com os outros de forma respeitosa. Esta visão pedagógica alinha-se com a necessidade de preparar cientistas que vejam para além das suas disciplinas, que compreendam as implicações sociais do seu trabalho, que valorizem a consciência tanto quanto a competência. A IA, a ciência climática e a investigação social devem ser ensinadas não como domínios isolados, mas como campos interligados que moldam e são moldados por valores humanos.

A natureza da consciência, explorada em “22 La Conscience: Un Voyage entre Matérialisme et Dualisme”, revela a profundidade do envolvimento filosófico de Morin. Não trata a consciência como um mero fenómeno neurológico, mas como uma propriedade relacional e emergente da vida. Esta perspetiva desafia os modelos reducionistas e abre espaço para uma ciência que honra a subjetividade, que respeita o mistério da experiência, que reconhece os limites da medição. Na era da IA, em que as máquinas imitam a cognição, as reflexões de Morin recordam-nos que a consciência não é computação mas que é vivida, sentida e encarnada.

Os dilemas éticos, dramatizados em “25 Dilemmes Moraux: L'Éthique de la Complexité”, ilustram os desafios de aplicar o raciocínio moral aos contextos científicos. Decisões sobre edição genética, privacidade de dados e políticas ambientais não podem ser tomadas em isolamento. Exigem um enquadramento que integre a complexidade, que considere consequências não intencionais, que valorize o pluralismo. A ética de Morin não é um conjunto de regras rígidas, mas de princípios dinâmicos e flexíveis, responsivos, enraizados no diálogo. Apela a uma ciência que seja não apenas rigorosa, mas sábia; não apenas inovadora, mas compassiva.

À medida que esta meditação prossegue, os fios da IA, da perturbação climática e da fragmentação social entrelaçam-se numa tapeçaria de urgência. A filosofia de Morin não oferece uma solução, mas uma direcção e uma forma de pensar que resiste à simplificação, que acolhe a nuance, que prioriza a vida. Ciência com consciência não é um slogan; é um compromisso com a integridade, com a responsabilidade e com a solidariedade. É uma recusa em separar o conhecimento do sentido, em tratar os factos como neutros, em ignorar as dimensões éticas da investigação. Nesta visão, a ciência torna-se uma prática de cuidado, uma forma de escuta e um gesto de respeito para com o mundo e os seus habitantes.

 

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