HOJEMACAU - O PAPA AMERICANO (II) CONTINUAÇÃO
A ordem internacional liberal do pós-II Guerra Mundial, caracterizada pela cooperação multilateral, governação institucional e consenso normativo em torno da democracia e dos mercados livres, está a sofrer uma transformação profunda. Outrora sustentada por instituições como as Nações Unidas, a Organização Mundial de Comércio e o sistema de Bretton Woods, esta ordem é hoje desafiada por um ressurgimento do nacionalismo, rivalidades geopolíticas e pela proliferação de alianças flexíveis e transaccionais.
A ordem internacional liberal emergiu das cinzas da II Guerra Mundial com o objectivo de prevenir futuros conflitos globais, promover a interdependência económica e institucionalizar a segurança colectiva.
As suas principais características incluíam:
· Multilateralismo: Criação de instituições globais para mediar disputas e coordenar políticas.
· Liberalismo Económico: Promoção do comércio livre, mercados abertos e mobilidade de capitais.
· Normas Democráticas: Compromisso normativo com os direitos humanos, o Estado de direito e a governação representativa.
Este consenso foi amplamente sustentado pela hegemonia dos Estados Unidos, que forneceu apoio material e liderança ideológica.
Nas últimas décadas, várias forças têm minado este consenso:
· Ressurgimento Nacionalista: Movimentos populistas nos Estados Unidos, Europa e noutras regiões questionam a legitimidade das instituições supranacionais e da governação global.
· Paralisia Institucional: Órgãos como o Conselho de Segurança da ONU e a OMC enfrentam bloqueios, comprometendo a sua capacidade de resposta.
· Contestação Normativa: Modelos alternativos de governação como o capitalismo de Estado da China ou a democracia soberana da Rússia desafiam as normas liberais.
O resultado é um crescente cepticismo quanto à universalidade dos valores liberais e uma retracção do globalismo em favor de políticas mais nacionalistas.
Em resposta ao declínio percebido das alianças fixas e das estruturas bipolares, os Estados adoptam cada vez mais estratégias multi-alinhadas ou não-alinhadas. Estes quadros caracterizam-se por:
· Diplomacia Transaccional: Cooperação específica por temas, sem compromissos ideológicos duradouros.
· Alianças Flexíveis: Parcerias baseadas em interesses pragmáticos, em vez de valores partilhados.
· Regionalismo e Minilateralismo: Agrupamentos regionais mais pequenos (ex.: ASEAN, BRICS, Quad) ganham protagonismo face às instituições globais.
Esta fluidez estratégica reflecte o desejo de autonomia num ambiente internacional incerto.
· Índia: Mantém parcerias estratégicas com os Estados Unidos e a Rússia, enquanto preserva laços económicos com a China.
· Turquia: Equilibra a sua pertença à NATO com ambições regionais e relações com a Rússia e o Irão.
· Estados Africanos: Relacionam-se com múltiplas potências como China, União Europeia, Estados Unidos com base em necessidades de infra-estruturas, comércio e segurança.
Estes exemplos ilustram a transição de alinhamentos ideológicos para envolvimentos pragmáticos.
A fragmentação da ordem global conduziu à pluralização de normas. Visões concorrentes de governação liberal, autoritária, híbrida coexistem e frequentemente entram em conflito nos fóruns internacionais. Isto compromete a coerência da formulação de regras globais e dificulta a resposta a desafios transnacionais como as alterações climáticas, pandemias e cibersegurança.
As instituições globais enfrentam pressão para se adaptarem a esta nova paisagem.
Algumas respostas incluem:
· Iniciativas de Reforma: Apelos à democratização do Conselho de Segurança da ONU ou à modernização dos mecanismos de resolução de litígios da OMC.
· Modelos de Governação Híbrida: Integração de actores estatais e não estatais na tomada de decisões globais.
· Cooperação Descentralizada: Ênfase em coligações regionais e temáticas para contornar bloqueios institucionais.
Embora a adaptação seja possível, exige vontade política e compromisso normativo.
A fragmentação da ordem global não representa o seu colapso total, mas sim a sua transformação num sistema mais contestado e plural. A erosão do consenso liberal pós-guerra e a ascensão de quadros multi-alinhados reflectem mudanças profundas no poder, identidade e legitimidade. Para decisores políticos, académicos e sociedade civil, o desafio reside em conceber modelos de governação que sejam simultaneamente inclusivos e eficazes, capazes de navegar a complexidade sem sacrificar a coerência. À medida que o mundo avança para um futuro multipolar e ideologicamente diverso, o imperativo não é restaurar uma ordem passada, mas reinventar a cooperação global para o século XXI.
Copyright © Jorge Rodrigues Simão